Aparição
1. Existencialismo
>O Existencialista considera que o homem está condenado a ser livre, uma vez que, posto no mundo, é responsável por aquilo que faz. Virgílio Ferreira, em Aparição, deixou-se influenciar por esta doutrina existencialista, especialmente pelo filosofo francês Sartre.
Aparição apresenta como tema básico o problema da existência do homem no mundo. Alberto procura encontrar a verdade na vida, mas a sua angústia cresce perante a fragilidade da existência e uma certa solidão e incompreensão no quotidiano. Querendo superar esta condição, cai na consciência do fracasso.
Na obra Aparição, é visível a filosofia existencialista, quando Alberto procura o eu autêntico, que apenas “aparece” em manifestações quotidianas do existente. Influenciado pela visão Sartriana, tenta demonstrar a necessidade do homem se encontrar a si mesmo, sem exigir a intervenção de Deus, considerando que a sua existência nada pode mudar. Recusa Deus e afirma a sua fé na omnipotência do Homem. Mas isto tudo provoca angústia e uma concepção trágica da realidade do ser humano: ao conceber a vida como criação, o ser humano defronta-se com o absurdo da morte; a liberdade do homem, enquanto ser no mundo e responsável pelo que faz, é contrariada pelas condições e atitudes dos outros e da sociedade, mas, sobretudo, pelos limites da condição humana.
Alberto Soares, o protagonista, procura, continuamente, a razão da existência no próprio Homem e tenta compreender a sua fragilidade e a tragicidade da condição humana. E as próprias experiências da paixão, de que deve ser responsável trazem-lhe surpresas que não domina, como acontece nas suas relações com Sofia.
“Ser para a morte” -> conclusão trágica para a existência
“o milagre do que sou” -> o milagre da vida
O que está em causa, ao longo da Aparição, é a interrogação que todo o Homem faz sobre o que é (“quem sou eu?”). Alberto tenta a descoberta de si próprio para alcançar a verdade. O que perturba Alberto é a evidência de sermos e a certeza de que um dia morreremos.
Virgílio Ferreira levanta não apenas a solução de adequação entra«e a vida e a morte, aceitando o impossível, mas coloca, também a possível superação da morte, afirmando a vida.
2. Estrutura
>A verdadeira acção circunscreve-se a atitudes e reflexões face à presença do homem no mundo e a uma concepção trágica da condição humana. O pensamento e as condições da existência desenvolvem-se, ao longo de 25 capítulos, através de um conjunto de acontecimentos que envolvem Alberto e a família Moura, em Évora, ou, ainda, Alberto e a família Soares, numa aldeia da Beira.
Em Évora decorre a acção principal com Alberto Soares a viver a sua primeira experiência como professor; na Beira decorre a acção secundária, com referência a acontecimentos das férias ou ocorridos em momentos anteriores aos de Évora.
Na acção principal, insere-se a acção trágica, marcada pela morte de Cristina e pelo assassinato de Sofia. Nesta acção principal procurou justificar a realidade da vida face à “inverosimilhança da morte”
A estrutura externa remete-nos de imediato para a existência de um prólogo, de 25 capítulos de desenvolvimento e de um epilogo. O prólogo e o epilogo surgem em itálico para marcar um tom ou seja, para exprimir uma hierarquia de valores. O epilogo termina de uma forma paralela ao prólogo, como que iniciando o desenvolvimento, enquadrado pelo prólogo e pelo epilogo, apresenta-nos uma acção dividida em duas ordens de acontecimentos, com o protagonista Alberto Soares em dois espaços distintos e convivendo com duas séries de personagens.
3. Personagens
>Alberto - professor no liceu de Évora, é o verdadeiro protagonista e coincide, em grande parte, com o narrador. Preocupado com as questões fundamentais das vida, não consegue superar a angústia, embora com a esposa já tenha aprendido a “verdade”.
>Evaristo - o mais novo dos irmãos caracteriza-se como magro e alto, irrequieto e quase sempre bem-disposto mas que tanto era “ cruel ou amável, egoísta ou generoso”. A sua esposa Júlia era muito gorda
>Tomás - o irmão mais velho, é considerado mais sensato, tinha a sua lavoura, era casado, com Isaura, e depois de se mostrar angustiado com a questão da vida, alcançará uma paz interior continuada na sua missão de pai, que um dia será pela décima vez.
>Sofia – tem uma face jovem, olhos vivos, “corpo intenso e maleável”, mãos brancas e subtis, um maravilhoso olhar. Tinha uma beleza demoníaca. Provocadora e sensual, o seu amor é feito se entusiasmo, de desespero e de loucura. Revela-se difícil desde criança, desafiando toda a gente, assim como as convenções sociais e morais e a própria vida, tentando o suicídio. Sofia leva tudo até às últimas consequências de estar no mundo. Dotada de excessiva energia, prefere o absoluto da destruição. Isto pode observar-se quando a irmã parte um braço de uma boneca e ela destrói os brinquedos um a um.
Em Sofia tudo é um enigma, com comportamentos, muitas vezes desconcertantes.
Alberto começa por lhe dar lições em latim. Sofia que mais tarde se envolveu com ela eroticamente, representa a tentação do fracasso e a possível negatividade das suas interrogações. A própria experiência de paixão, de que deve ser responsável, traz-lhe surpresas que não domina.
Depois de uma férias, Alberto toma conhecimento das relações de Sofia com Carolino. Os ciúmes deste acabam em actos de loucura. Carolino tenta matar Alberto, e num acto de amor e violência, acaba por assassinar Sofia por considerá-la superior, enorme, grandiosa. Sofia pagou com a sua vida a sua ousadia.
>Ana – a filha mais velha do Dr. Moura, revela-se, para Alberto, de uma enorme grandeza. Inquieta, parece, até certo momento, aceitá-lo e compreende-lo, embora resista à sua noticia “messiânica”. A sua sabedoria seduz o professor.
Ana possui cabelos longos e lisos, face magra, olhar vivo. Está casada com Aslfredo Cerqueira, um homem honesto, prática, mas 1pouco grosseiro. Lera dois livros de Alberto e sentira-se tocada pelas considerações existencialistas que neles se vislumbram. Parece haver uma intersecção entre a verdade de Ana e a verdade de Alberto, que chega a considerar que ela também sabe as palavras do abismo.
A angústia perante a fragilidade e as limitações da condição humana são para a irmã de Sofia o resultado de uma experiência: sem possibilidade de ter filhos, sente-se frustrada; e sente-se infeliz e um pouco humilhada por ver que o marido, gosta de mostrar “a sua posse” e as suas preocupações com a herdade, mas não ter cuidado com a forma que se veste e fala.
Não podendo ter filhas, trata Cristina como se fosse a sua filha. Após a sua morte, transforma o seu comportamento. Mais tarde adopta os 2 filhos do Bailote, que se suicidara.
>Cristina – Uma menina de 7anos, admirável, de cabeleira loira. Em Cristina tudo é arte. É criança e ainda não questiona a vida, revelando, com a sua música, um mundo maravilhoso de harmonia. Cristina é uma aparição maravilhosa. A sua música tem, para o narrador, o dom da revelação. Morrerá tragicamente ao regressar ao Redondo, mas a sua imagem, a sua música e o silêncio da morte serão para sempre uma amargura, presente na memória de Alberto.
Cristina dotada de uma grande pureza, parece não pertencer à vida terrena. Através da morte, vai possibilitar a Alberto a exaltação integral da condição humana, “ter a evidência ácida do milagre do que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, a ver depois, em fulgor, que tenho de morrer”. Cristina e a força mágica da sua música continuarão vivas na memória de todos
>Carolino – é uma personagem importante, que fica marcado pelo assassinato de Sofia e pela sua fascinação pela morte como criação.
4. Espaço
>Évora é o espaço da acção central. Os arredores de Évora são também referidos constantemente.
Na Beira está a casa e as propriedades dos pais de Alberto. O velho casarão onde viveu e que lhe permite agora as recordações situa-se na serra.
Faro é também um espaço para Alberto, mas só adquire relevo como desenlace para a sua vida.
O espaço físico da “casa enorme e deserta” da família Soares serve para o narrador escrever as imagens da memória e encontrar a Aparição “fantástica das coisas, das ideias e de mim”. Daqui procura o encontro com a verdade da vida; aqui se debate com a problemática da morte que se apresenta como um absurdo.
O espaço do universo oferece-lhe sensações de plenitude, de espaços livres, de vida criadora, mas também do passar dos séculos, da solidão e da morte.
5. Tempo
>A narração de Alberto acontece numa noite quente de Verão, em que se relembra a problemática da vida e da morte. O percurso do narrador, que casou, adoeceu e se retirou do ensino só nos é revelado nas últimas páginas.
A acção principal é narrada de acordo com a ordem cronológica. Alguns factos anteriores à história e a morte do pai são relatados em analepses. A acção secundária, que aparece encaixada na principal, é apresentada também em sequência cronológica.
Muitas vezes o narrador utiliza pequenas prolepses em relação à história que está a contar. Recorre à elipse, quando omite os acontecimentos entre as férias da Páscoa e a chegada do Verão
6. Narrador e processo narrativo
>Alberto Soares, o protagonista de Aparição, conta a história que narra e é narrada. É uma figura ambígua, ao assumir-se como a personagem que diz “Eu” e ao apresentar-se como aquele que escreve o que lemos. Na introdução e na parte final, age como o autor que escreve um diário, procurando dar ao leitor a história de uma personagem, que se confunde consigo mesmo. Daí podermos falar de um narrador autodiegético, que surge no texto como protagonista, e de um narrador omnisciente, que constrói em retrospectiva a narração e transparece do texto com a voz de autor-modelo.
O narrador de primeira pessoa dirige-se a si próprio e aos outros, mas deixa que seja a personagem Alberto Soares a observar os outros, para procurar neles um rasto de si próprio e a reflectir sobre si mesmo para descobrir a verdade da vida.
Romance em primeira pessoa, Aparição oferece-nos um eu-narrador e um eu-personagem que convergem. No prólogo e no epílogo, o sujeito da enunciação inclui-se a si próprio, transformando-se na personagem Alberto, ao longo do desenvolvimento.
Ao longo da narração, procura criar coincidências entre o tempo da diegese e o tempo da escrita, fazendo com que dure tempos semelhantes o narrado e a narração.
Diversas vezes, o narrador escreve à distância “de alguns anos”, como quando reproduz o passado, em Évora, a recordar a morte do pai.
A aproximação entre o narrador ou Alberto e o autor Virgílio Ferreira é visível. O próprio refere a sua experiência como professor em Évora e o que desse espaço “transbordou de emoção para a lembrança”.
Em Aparição, observa-se que o narrador relembra e escreve uma história vivida anos antes.
A reflexão e o monólogo interior orientado para a perturbação que constitui o “encontro com a pessoa que nos habita” e que permite uma classificação de Aparição como uma espécie de romance-ensaio.
7. Código da metafísica/ simbologia
>Noite – surge ligada a acontecimentos trágicos que afectam o narrador. A noite favorece a germinação das interrogações, da descoberta, da “aparição” da verdade
>Neve - associa-se à pureza e purificação. Cobre o mundo para que um novo surja. As neves provocam a destruição mas, derretidas em água, favorecem a germinação. A neve liga-se assim à génese da vida.
>Montanha – enigmática, apresenta-se simbólica. Verdadeiro símbolo cósmico, aparece como seio acolhedor, protecção dos perigos da cidade, onde há ausência do mal e se estreita a relação com o sagrado
>Lua - força purificadora, de pureza original e absoluta. Permite a revelação do eu, da angústia e da morte. Aparece associada à noite.
>Chuva – símbolo da fertilidade da terra. Alberto gosta de andar à chuva pois ela surge-lhe como revelação, fertilizando a memória e abrindo-lhe o presente ao passado.
>Vento – É a voz das origens, e também o símbolo da efemeridade.
>Sol – simboliza a vida, a luz e a energia. Ao ser luz, o sol simboliza a revelação de si e dos outros.
>Silêncio - Aparece a traduzir os momentos de reflexão, de busca do eu profundo
>Fogo - destruição. Exprime a catástrofe e a vida. Pode também traduzir o aniquilamento e a força da paixão.
>Música - sensibilidade, a harmonia e o próprio fluir da escrita. Estrutura a narrativa, simbolizando o vibrar da vida, nas suas múltiplas manifestações. A música, o grito, o gesto são vozes das profundezas, ecos de memória.
>Alentejo – símbolo de espaço terrestre. Aparece ligada ao destino trágico da Sofia.
>Cidade – Surge associada aos perigos, à falta de ordem.
>Morte – fim do passado de esplendor, de quem se sentia criador, mas nunca tomou consciência do milagre da vida. Símbolo do vazio, do fim do imediato, da efemeridade da beleza e da sensualidade (Sofia). Símbolo da destruição das mãos de quem quer ser senhor (Carolino). Símbolo do que não comporta o intemporal (Cristina).
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